escrevi esse relato há dois meses, mas só agora deu vontade de compartilhar por aqui. então... senta que lá vem história.
O parto é uma aventura, e uma experiência. Experiência é uma palavra que usei muito nos últimos meses, ficou impressa várias vezes no meu outro parto, da dissertação. Eu falo que experiência é uma coisa que atravessa a gente, e cujo desfecho é necessariamente inesperado. Na sua raiz, experiência traz a origem, o inesperado e o perigo. Assim foi o parto da Clarice.
Todas as outras vezes que comecei a escrever esse relato (e foram algumas), eu me detive na ordem das coisas, e nos números: quantos cm de dilatação, qual o intervalo das contrações, que horas eram, qual a sequência dos fatos. E o relato ficava ali, travado e parado. Eu querendo justificar, mensurar, explicar o que na verdade não tem explicação nenhuma.
Então eu desapeguei. Me entreguei, como tenho tentado fazer todos os dias dos últimos quatro meses. Como tentei também durante a gravidez, como acho que a gente deveria fazer na vida toda. E vou tentar contar a história dessa experiência única e indescritível que foi parir minha filha.
No final da gravidez – bagunçadamente localizado em qualquer lugar depois das 38 semanas – eu senti bastante pródromos. Umas contrações que iam e vinham, mas não pegavam ritmo nem nada. Na quarta, 14 de maio, não foi diferente. Estava sentada no chão, colocando linha em tsurus de papel, quando elas começaram, pra depois parar de novo. Fiquei frustrada e achei que eu tava travando o trabalho de parto, que por algum motivo eu estava bloqueando o bebê de vir (nessa hora eu ainda não sabia que era a Clarice – até desconfiava que era uma menina, mas não tinha mesmo como saber que era a Clarice vindo). Fui dormir quase 1h da manhã decidida a ligar pra Paloma no dia seguinte e pedir pra gente conversar sobre o que poderia estar "impedindo" meu parto.
Poucas horas depois eu acordei com uma contração. Um pouco mais forte que as outras, mas ainda mais fraca que meu sono da madrugada. Tentei dormir mas, opa, mais uma. Olhei no relógio só por curiosidade, 10 minutos. Fiquei nessa de contração e tentar dormir um tempo. Senti que não ia passar e acordei o Marcel: marca aí, que acho que tem alguma coisa acontecendo. Íamos tentando dormir e marcar o ritmo. Quando o dia mais ou menos amanheceu, liguei pra Paloma e falei que estava diferente e que achava que era o dia. Ela disse que dali um pouco iria lá em casa, pra eu tentar descansar e/ou tomar um banho e comer alguma coisa.
Fui tomar banho bem animada. "Meu último banho grávida", eu pensei. Aproveitei pra raspar a perna (haha, sou dessas), porque imaginei que ia demorar um tempo até conseguir fazer isso de novo (terrorismo de “com bebê não dá tempo de na-da” super funcionou comigo). As contrações continuavam vindo, mas eram bem tranquilas de lidar. Eu respirava fundo, dobrava um pouco o corpo e logo passavam. Tirei ainda a última foto da barriga (sou dessas 2) e fui tomar o café da manhã que o Marcel tinha preparado.
(última foto oficial da barriga)
Era uma mistura de alegria e frio na barriga, e a gente se olhava meio sem acreditar, meio animados e meio tentando ficar calmos. Fiquei feliz que no dia anterior a gente tinha comprado umas flores bonitas, e lembro de pensar que esse bebê tinha esperado tudo mesmo. Sentei pra comer e uma contração veio rápido demais depois da outra, uns 3 minutos só. Uééé, mas já 3 minutos? Dei até uma desanimada, achando que ia ficar desregular e não ia ser aquele dia. Fiquei observando e as bichinhas estavam mesmo ritmadas em 3 minutos. Liguei pra Paloma: pode isso? A regra não é clara que o intervalo vai diminuindo aos poucos etc etc? Mas em parto pode tudo, e ela disse que já estava chegando para ver como eu estava. Aproveitei e liguei pra Carminha, doula e professora de yoga. Fiquei rindo porque na terça anterior, no fim da aula, a Carminha disse “até quinta” e eu falei que não queria ir pra aula quinta, que eu queria já ter parido ou estar parindo. Pois bem, se eu não vou pra aula ninguém mais vai, ha ha.
A Paloma chegou, viu que as contrações estavam ritmadas em 3 minutos mesmo e perguntou se eu queria fazer exame de toque pra ver a dilatação. Eu queria sim, estava bem curiosa. Fomos lá e tinha 2cm. Eu achei bom porque era mais que nada, então simbora. A Carminha chegou logo depois, e ficamos na sala conversando, eu respirava, andava, abaixava, ficava na bola... lembro que coloquei pão de queijo no forno pra gente lanchar, e coloquei também a trilha sonora que fiz pro parto (só uma nota: eu como fazedora de trilha sonora sou uma ótima professora... algumas músicas eu não gostei, outras tinham significado mas não tinham o menor clima, tinha uma meio triste, enfim. Foi um bom exercício, mas ainda bem que a Carminha tinha levado umas músicas). A Paloma tinha acupuntura e falou que ia, que ainda estava tranquilo e qualquer coisa podíamos ligar. Mas acho que meu santo era mais forte e quando ela chegou no carro, cancelaram a sessão. Fica, parteira!
As horas foram passando. O clima em casa era muito legal, mas eu estava cansando porque tinha dormido pouco. Com as contrações tão perto ficou difícil descansar, porque deitada doída muito mais, e ficar levantando e deitando de 3 em 3 minutos era mais cansativo do que não deitar. Consegui uma hora mais ou menos me ajeitar de lado na poltrona, mas não durou muito. Fui pro chuveiro, e o alívio foi imenso. Apoiava o corpo pra frente e ficava meio cantando, meio vocalizando. Pensei que estava até bem nesse negócio de trabalho de parto, nem tinha gritado ainda (spoiler: sabe de nada). Fiquei um bom tempo no chuveiro, acho que fiz cocô ali e morri de vergonha, mas a Carminha foi muito tranquila, no estilo "faz parte, já vi muito isso, relaxa" e eu relaxei. Parir tem dessas coisas, fazer o que.
Quando olhei, a piscina de parto já estava montada na sala, com plásticos, a mangueira vindo do banheiro pequeno e tudo esquematizado. o Marcel foi comprar algumas coisas pra fazer almoço, e depois que ele voltou começaram os preparativos. Essa foi uma das minhas partes preferidas, e tirei até foto entre uma contração e outra. Paloma ralando a cenoura (com a Carminha falando “vou tirar foto disso pra ninguém falar que parteira não rala!”), Marcel fazendo um macarrão e Carminha secando a louça e também vendo como eu estava e fazendo massagens. E eu ali, na bancada, me apoiando a cada contração, que a essa altura já doíam mais.
Almoçamos, as contrações intensificando, e a Paloma perguntou se eu queria ver a dilatação. Queria, eu acho que precisava dos números ali me falando que estava indo: 4cm. No fundo achei pouco, mas o Marcel ficou tão animado porque tinha dobrado, que eu até me animei também. Chamei ele e pedi pra ele ficar comigo, e fomos então atravessando juntos o caminho. Eu sentava na bola, me apoiava nele. A Carminha vinha fazer massagem, ajeitava a bolsa de água quente que estava nas minhas costas, e ajudava o Marcel a empurrar meu quadril, que era o que mais aliviava as dores.
Voltei pro chuveiro, e a dor já era mais forte. Quando saí do chuveiro dessa vez cheguei perto do sofá e meio que desabei, tive que me apoiar. A Paloma tinha saído nessa hora, e lembro de ouvir a Carminha ligar pra ela pra falar que estava pegando ali. Elas conversaram e acharam que já dava pra entrar na piscina, para ficar de olho pro trabalho de parto não parar. Entrei na piscina e aaaah, água quentinha, sua linda! Vou ser sincera, não é que a dor tenha passado ou ficado boa, não. Mas deu um alívio bom. Acho que nessa hora o Marcel entrou na piscina comigo (talvez tenha sido depois). Eu ficava me virando dentro d'água, tentando achar posição pra encarar as contrações. Acho também que nessa hora os intervalos estavam bem menores. Minha sensação era que estava vindo uma seguida da outra, mal dava tempo de me recompor. Pensei em duas amigas, que tinham ficado 2 e 3 dias em trabalho de parto, e admirei muito elas. Pensei comigo que eu só ia aguentar um dia mesmo e olhe lá, tava muito punk. Lembrei também de uma amiga da yoga, grávida da 2a filha, que tinha me falado uns dias antes que era uma “dor boa”. Ela disse que era boa porque tinha um propósito, a gente sabia que era o bebê vindo. Eu quis bater nela, porque na verdade eu estava começando a achar que o bebê não ia mais vir, não ia nascer nunca. Foi nessa hora também que eu comecei a gritar. Achei que eu tava dando uns gritos normais, mas aí uma hora me ouvi, e eu estava urrando. Nunca tinha ouvido uma coisa daquelas, e me perguntei como os vizinhos não tinham batido na porta ainda. Em algum momento no meio disso a Paloma voltou e começou a arrumar tudo. Ela andava de um lado pro outro, trazia coisas pra sala, mas eu pouco via. Sei também que saí da piscina uma hora, acho que fizemos outro exame de toque e eu estava com 8cm. Achei bom, mas pra ser sincera de novo, pela dor que eu estava sentido achei que ia estar em 11cm (oi, exagero). De novo na piscina e a dor estava demais. Eu não queria mais brincar desse negócio de parto, doía muito. Eu olhava pro Marcel e falava "eu não quero mais, por favor, Mar..." . Ele foi muito forte nessas horas. Segurava minha mão, olhava bem no meu olho e falava que estava tudo bem, que nosso bebê estava vindo, que eu era muito forte. Perguntei uma hora pra Carminha, em desespero, por que estava doendo tanto. Ela disse também que era meu bebê descendo, mas eu quase não acreditava mais. Parecia que eu tinha chegado em todos meus limites, que meu quadril ia arrebentar de dor. Lembro de pensar por que raios tinha inventado esse ideia (de jerico) de fazer parto em casa. Por que eu não tinha marcado a cesárea? Ou pelo menos uma anestesia? Pensei que ainda dava tempo da anestesia, mas olhei no relógio e achei que se fôssemos pro hospital ia estar um baita trânsito, e ficar parada dentro de um carro me pareceu impossível. Também achei que eu já devia tá com muitos cm e que nem ia rolar mais de tomar anestesia, então vamos lá ficar na piscina em casa mesmo. No meio desses devaneios, a campainha tocou e eu levei um susto, achando que era alguém reclamando dos gritos, mas era a Iara. Bom sinal, se a Iara chegou é porque tá perto do bebê nascer. A Iara, a Paloma e a Carminha iam me encorajando, falando que eu estava indo bem, e o Marcel me apoiando também. Nessa hora, eu era só grito e dor e vontade de desistir. Alguém falou pra eu me entregar, mas eu não sabia mais o que entregar. A Paloma disse que eu estava com 9cm e sugeriu eu colocar a mão para sentir a cabecinha do bebê começando a coroar. Mas eu estava num equilíbrio tão frágil que sentia que qualquer movimento ia doer muito mais.
Comecei a ficar muito incomodada na banheira, com calor e enjoada, então fui pra banqueta, na sala, apoiada na rede e no Marcel. A dor continuava intensa, e eu falei pra Paloma que não tinha nascido praquilo. Ela olhou pra mim e disse que eu tinha nascido praquilo, sim. Que tinha sido feita praquilo. Viu que o colo estava atrapalhando o último cm de dilatação, e sugeriu rompermos a bolsa. Eu demorei um tempo pra entender o que ela estava falando, no meio da dor. A Iara também achou que fosse ajudar, disse que estava bem indicado. Pensei que eu topava qualquer coisa que fosse ajudar o bebê a nascer. Então a Paloma rompeu a bolsa e sugeriu eu ir pro quarto, ficar meio deitada por algumas contrações. Subi na cama e fiquei um pouco lá, depois passei pra banqueta, no quarto mesmo. Num espaço pequeno entre a cama e o armário, com o Marcel atrás de mim me segurando e a Carminha na minha frente, pra eu puxar os braços dela. A Paloma pediu pra Iara pegar o oxigênio e eu gelei, achei que tivesse alguma coisa errada com o bebê. Mas era só pra me dar um fôlego, porque eu estava muito cansada. E era hora de fazer força. A bem da sinceridade (um dos meus objetivos nesse relato), eu não soube que força fazer. Fiquei meio frustrada, confesso, porque achava que eu saberia na hora. Mas eu não sabia, e as três mulheres que me acompanhavam foram me ajudando. Segura o ar, espera, solta, força. A Paloma pegou minha mão e colocou pra eu sentir a cabeça. Aaaah! Tava ali, tava nascendo! Ela colocou um espelho e eu vi o cabelinho... isso me deu um gás imenso, e fui fazendo força. Uma força imensa, sei lá da onde eu tirei essa força. Eu concentrei bem e só queria fazer o bebê nascer, e pensava que tava muito perto. De repente, a queimação. Intensa, grande, gigantesca. Círculo de fogo é mesmo uma boa descrição. A cabeça tinha saído, e num pluft depois escorregou o corpinho.
Nasceu! Meu bebê nasceu! A Iara falou "vinte e uma e quarenta nove", a hora que eu nunca vou esquecer na vida. A Paloma tirou a volta do cordão (que eu nem vi na verdade, fiquei sabendo depois) e me entregou aquele pacotinho. Eu não acreditava. Não acreditava que tinha nascido, que eu tinha parido, que a dor tinha acabado, que eu era mãe, que tinha uma pessoa nova no mundo. Dei as boas vindas, e olhava pro pacotinho e pro Marcel, e beijava o pacotinho. Aí lembramos de olhar pra saber se era menino ou menina: menina! É uma menininha linda, olha, meu amor. Uma emoção sem tamanho tomou conta de mim, da casa, do mundo. Levantei e fui pra cama, deitei um pouco. Fiquei ali namorando a menininha linda que, ao contrário do que eu queria, não tinha a menor cara de Clara. Ela já mamou, sugando muito forte, e a Iara disse que pelo jeito ela nasceu porque estava com fome. Elas saíram do quarto e ficaram na sala. Ficamos eu, Marcel e nossa filha ali. Quis ligar pra minha mãe pra contar, e foi uma bagunça só enquanto ela contava pro meu pai e pros pais do Marcel, que estavam lá. Liguei pra minha irmã e pro meu irmão. Os irmãos do Marcel já tinham ficado sabendo. Quanto amor dava pra sentir em tão pouco tempo! Ela tava ali, no meu colo. Minha filha.
A Paloma, a Iara e a Carminha voltaram depois. A placenta saiu lindona, segundo a Iara. Me limparam um pouco, a Carminha me deu sopa na boca. Paloma pesou e mediu a pequena, que nasceu com 49cm e 3,600kg e só ganhou nome no dia seguinte (eu achava que íamos demorar semanas, então menos de 24h foi bom demais). Ela ficou ali, no meu colo. Nosso pacotinho mais lindo... O Marcel cortou o cordão umbilical dela, e a Paloma já tirou o sangue para fazermos o exame de rh no dia seguinte. A Carminha foi embora primeiro, cansada do dia intenso, e a Iara e a Paloma ainda ficaram um pouco, porque tive que levar uns pontos. Depois dormimos, pela primeira vez, nós três na nossa casa. O mundo tinha mudado pra sempre.
Hoje consigo reconhecer a beleza e a força do parto que tive, com suas travessias, dúvidas e sombras. Com as longas horas e tudo mais que aconteceu. Mas logo depois eu achei que tivesse sido um parto "menor", como se existisse isso. Como se cada vez que vacilei, que achei que não fosse aguentar, diminuíssem a minha experiência. Percebo agora a bobagem que isso é, a armadilha em que me meti. Todo parto é gigante e imenso, todo parto é único, todo parto é como deve ser. Todo parto é uma passagem pra algo muito maior, todo parto ensina o que a gente precisa. Todo parto é perfeito do seu jeito. Foi isso que aprendi, e vou aprendendo a cada vez que conto do parto, cada vez que lembro de detalhes.
Muita coisa ficou de fora do relato, claro. A Paloma toda hora escutando o coração do bebê, o quase vômito que rolou, os outros cocôs fora de lugar que rolaram também. A Paloma falando que minha frase “eu não nasci pra isso” tinha sido inédita (vou entrar pro caderninho!). Tantas belezas, nuances e escatologias que fazem parte do parto, parte da vida.
E agora, sentindo como quem ganha um Oscar (só que bem mais legal), os agradecimentos.
Falo, de jeito bem piegas, que as três mulheres que estavam comigo foram como fadas, cada uma com um presente. A Paloma trouxe força. Uma força carinhosa, mas determinada e firme, que me ajudou a seguir em frente e acreditar. A Carminha, com seu jeito lindo, trouxe tranquilidade. Uma calma tão grande que tomou até sorvete no meio do turbilhão, e eu adoro lembrar disso. A Iara, que eu só tinha visto uma vez na vida, trouxe a amorosidade. A torcida que ela fez pra mim foi indescritível e fez muita diferença. Impossível agradecer suficientemente tudo o que elas fizeram, tudo que foram. É um laço que, eu acredito e espero, não se desfaz. Elas ajudaram a trazer minha filha ao mundo com respeito, carinho e confiança, e pra isso não existem palavras.
Agradeço, muito, ao Marcel, meu marido e companheiro, que vivenciou o parto comigo de forma tão intensa e entregue. Foi ali meu porto seguro, acreditando em todos os momentos na minha força quando eu mesma duvidava. Compartilha a vida, os sonhos e as aventuras comigo, e disso também as palavras não dão conta.
Agradeço à Clarice, por ser do jeitinho dela e por ser minha filha.
E agradeço à vida, “que me ha dado tanto”.
O parto é uma aventura, e uma experiência. Experiência é uma palavra que usei muito nos últimos meses, ficou impressa várias vezes no meu outro parto, da dissertação. Eu falo que experiência é uma coisa que atravessa a gente, e cujo desfecho é necessariamente inesperado. Na sua raiz, experiência traz a origem, o inesperado e o perigo. Assim foi o parto da Clarice.
Todas as outras vezes que comecei a escrever esse relato (e foram algumas), eu me detive na ordem das coisas, e nos números: quantos cm de dilatação, qual o intervalo das contrações, que horas eram, qual a sequência dos fatos. E o relato ficava ali, travado e parado. Eu querendo justificar, mensurar, explicar o que na verdade não tem explicação nenhuma.
Então eu desapeguei. Me entreguei, como tenho tentado fazer todos os dias dos últimos quatro meses. Como tentei também durante a gravidez, como acho que a gente deveria fazer na vida toda. E vou tentar contar a história dessa experiência única e indescritível que foi parir minha filha.
No final da gravidez – bagunçadamente localizado em qualquer lugar depois das 38 semanas – eu senti bastante pródromos. Umas contrações que iam e vinham, mas não pegavam ritmo nem nada. Na quarta, 14 de maio, não foi diferente. Estava sentada no chão, colocando linha em tsurus de papel, quando elas começaram, pra depois parar de novo. Fiquei frustrada e achei que eu tava travando o trabalho de parto, que por algum motivo eu estava bloqueando o bebê de vir (nessa hora eu ainda não sabia que era a Clarice – até desconfiava que era uma menina, mas não tinha mesmo como saber que era a Clarice vindo). Fui dormir quase 1h da manhã decidida a ligar pra Paloma no dia seguinte e pedir pra gente conversar sobre o que poderia estar "impedindo" meu parto.
Poucas horas depois eu acordei com uma contração. Um pouco mais forte que as outras, mas ainda mais fraca que meu sono da madrugada. Tentei dormir mas, opa, mais uma. Olhei no relógio só por curiosidade, 10 minutos. Fiquei nessa de contração e tentar dormir um tempo. Senti que não ia passar e acordei o Marcel: marca aí, que acho que tem alguma coisa acontecendo. Íamos tentando dormir e marcar o ritmo. Quando o dia mais ou menos amanheceu, liguei pra Paloma e falei que estava diferente e que achava que era o dia. Ela disse que dali um pouco iria lá em casa, pra eu tentar descansar e/ou tomar um banho e comer alguma coisa.
Fui tomar banho bem animada. "Meu último banho grávida", eu pensei. Aproveitei pra raspar a perna (haha, sou dessas), porque imaginei que ia demorar um tempo até conseguir fazer isso de novo (terrorismo de “com bebê não dá tempo de na-da” super funcionou comigo). As contrações continuavam vindo, mas eram bem tranquilas de lidar. Eu respirava fundo, dobrava um pouco o corpo e logo passavam. Tirei ainda a última foto da barriga (sou dessas 2) e fui tomar o café da manhã que o Marcel tinha preparado.
(última foto oficial da barriga)
Era uma mistura de alegria e frio na barriga, e a gente se olhava meio sem acreditar, meio animados e meio tentando ficar calmos. Fiquei feliz que no dia anterior a gente tinha comprado umas flores bonitas, e lembro de pensar que esse bebê tinha esperado tudo mesmo. Sentei pra comer e uma contração veio rápido demais depois da outra, uns 3 minutos só. Uééé, mas já 3 minutos? Dei até uma desanimada, achando que ia ficar desregular e não ia ser aquele dia. Fiquei observando e as bichinhas estavam mesmo ritmadas em 3 minutos. Liguei pra Paloma: pode isso? A regra não é clara que o intervalo vai diminuindo aos poucos etc etc? Mas em parto pode tudo, e ela disse que já estava chegando para ver como eu estava. Aproveitei e liguei pra Carminha, doula e professora de yoga. Fiquei rindo porque na terça anterior, no fim da aula, a Carminha disse “até quinta” e eu falei que não queria ir pra aula quinta, que eu queria já ter parido ou estar parindo. Pois bem, se eu não vou pra aula ninguém mais vai, ha ha.
A Paloma chegou, viu que as contrações estavam ritmadas em 3 minutos mesmo e perguntou se eu queria fazer exame de toque pra ver a dilatação. Eu queria sim, estava bem curiosa. Fomos lá e tinha 2cm. Eu achei bom porque era mais que nada, então simbora. A Carminha chegou logo depois, e ficamos na sala conversando, eu respirava, andava, abaixava, ficava na bola... lembro que coloquei pão de queijo no forno pra gente lanchar, e coloquei também a trilha sonora que fiz pro parto (só uma nota: eu como fazedora de trilha sonora sou uma ótima professora... algumas músicas eu não gostei, outras tinham significado mas não tinham o menor clima, tinha uma meio triste, enfim. Foi um bom exercício, mas ainda bem que a Carminha tinha levado umas músicas). A Paloma tinha acupuntura e falou que ia, que ainda estava tranquilo e qualquer coisa podíamos ligar. Mas acho que meu santo era mais forte e quando ela chegou no carro, cancelaram a sessão. Fica, parteira!
As horas foram passando. O clima em casa era muito legal, mas eu estava cansando porque tinha dormido pouco. Com as contrações tão perto ficou difícil descansar, porque deitada doída muito mais, e ficar levantando e deitando de 3 em 3 minutos era mais cansativo do que não deitar. Consegui uma hora mais ou menos me ajeitar de lado na poltrona, mas não durou muito. Fui pro chuveiro, e o alívio foi imenso. Apoiava o corpo pra frente e ficava meio cantando, meio vocalizando. Pensei que estava até bem nesse negócio de trabalho de parto, nem tinha gritado ainda (spoiler: sabe de nada). Fiquei um bom tempo no chuveiro, acho que fiz cocô ali e morri de vergonha, mas a Carminha foi muito tranquila, no estilo "faz parte, já vi muito isso, relaxa" e eu relaxei. Parir tem dessas coisas, fazer o que.
Quando olhei, a piscina de parto já estava montada na sala, com plásticos, a mangueira vindo do banheiro pequeno e tudo esquematizado. o Marcel foi comprar algumas coisas pra fazer almoço, e depois que ele voltou começaram os preparativos. Essa foi uma das minhas partes preferidas, e tirei até foto entre uma contração e outra. Paloma ralando a cenoura (com a Carminha falando “vou tirar foto disso pra ninguém falar que parteira não rala!”), Marcel fazendo um macarrão e Carminha secando a louça e também vendo como eu estava e fazendo massagens. E eu ali, na bancada, me apoiando a cada contração, que a essa altura já doíam mais.
Almoçamos, as contrações intensificando, e a Paloma perguntou se eu queria ver a dilatação. Queria, eu acho que precisava dos números ali me falando que estava indo: 4cm. No fundo achei pouco, mas o Marcel ficou tão animado porque tinha dobrado, que eu até me animei também. Chamei ele e pedi pra ele ficar comigo, e fomos então atravessando juntos o caminho. Eu sentava na bola, me apoiava nele. A Carminha vinha fazer massagem, ajeitava a bolsa de água quente que estava nas minhas costas, e ajudava o Marcel a empurrar meu quadril, que era o que mais aliviava as dores.
Voltei pro chuveiro, e a dor já era mais forte. Quando saí do chuveiro dessa vez cheguei perto do sofá e meio que desabei, tive que me apoiar. A Paloma tinha saído nessa hora, e lembro de ouvir a Carminha ligar pra ela pra falar que estava pegando ali. Elas conversaram e acharam que já dava pra entrar na piscina, para ficar de olho pro trabalho de parto não parar. Entrei na piscina e aaaah, água quentinha, sua linda! Vou ser sincera, não é que a dor tenha passado ou ficado boa, não. Mas deu um alívio bom. Acho que nessa hora o Marcel entrou na piscina comigo (talvez tenha sido depois). Eu ficava me virando dentro d'água, tentando achar posição pra encarar as contrações. Acho também que nessa hora os intervalos estavam bem menores. Minha sensação era que estava vindo uma seguida da outra, mal dava tempo de me recompor. Pensei em duas amigas, que tinham ficado 2 e 3 dias em trabalho de parto, e admirei muito elas. Pensei comigo que eu só ia aguentar um dia mesmo e olhe lá, tava muito punk. Lembrei também de uma amiga da yoga, grávida da 2a filha, que tinha me falado uns dias antes que era uma “dor boa”. Ela disse que era boa porque tinha um propósito, a gente sabia que era o bebê vindo. Eu quis bater nela, porque na verdade eu estava começando a achar que o bebê não ia mais vir, não ia nascer nunca. Foi nessa hora também que eu comecei a gritar. Achei que eu tava dando uns gritos normais, mas aí uma hora me ouvi, e eu estava urrando. Nunca tinha ouvido uma coisa daquelas, e me perguntei como os vizinhos não tinham batido na porta ainda. Em algum momento no meio disso a Paloma voltou e começou a arrumar tudo. Ela andava de um lado pro outro, trazia coisas pra sala, mas eu pouco via. Sei também que saí da piscina uma hora, acho que fizemos outro exame de toque e eu estava com 8cm. Achei bom, mas pra ser sincera de novo, pela dor que eu estava sentido achei que ia estar em 11cm (oi, exagero). De novo na piscina e a dor estava demais. Eu não queria mais brincar desse negócio de parto, doía muito. Eu olhava pro Marcel e falava "eu não quero mais, por favor, Mar..." . Ele foi muito forte nessas horas. Segurava minha mão, olhava bem no meu olho e falava que estava tudo bem, que nosso bebê estava vindo, que eu era muito forte. Perguntei uma hora pra Carminha, em desespero, por que estava doendo tanto. Ela disse também que era meu bebê descendo, mas eu quase não acreditava mais. Parecia que eu tinha chegado em todos meus limites, que meu quadril ia arrebentar de dor. Lembro de pensar por que raios tinha inventado esse ideia (de jerico) de fazer parto em casa. Por que eu não tinha marcado a cesárea? Ou pelo menos uma anestesia? Pensei que ainda dava tempo da anestesia, mas olhei no relógio e achei que se fôssemos pro hospital ia estar um baita trânsito, e ficar parada dentro de um carro me pareceu impossível. Também achei que eu já devia tá com muitos cm e que nem ia rolar mais de tomar anestesia, então vamos lá ficar na piscina em casa mesmo. No meio desses devaneios, a campainha tocou e eu levei um susto, achando que era alguém reclamando dos gritos, mas era a Iara. Bom sinal, se a Iara chegou é porque tá perto do bebê nascer. A Iara, a Paloma e a Carminha iam me encorajando, falando que eu estava indo bem, e o Marcel me apoiando também. Nessa hora, eu era só grito e dor e vontade de desistir. Alguém falou pra eu me entregar, mas eu não sabia mais o que entregar. A Paloma disse que eu estava com 9cm e sugeriu eu colocar a mão para sentir a cabecinha do bebê começando a coroar. Mas eu estava num equilíbrio tão frágil que sentia que qualquer movimento ia doer muito mais.
Comecei a ficar muito incomodada na banheira, com calor e enjoada, então fui pra banqueta, na sala, apoiada na rede e no Marcel. A dor continuava intensa, e eu falei pra Paloma que não tinha nascido praquilo. Ela olhou pra mim e disse que eu tinha nascido praquilo, sim. Que tinha sido feita praquilo. Viu que o colo estava atrapalhando o último cm de dilatação, e sugeriu rompermos a bolsa. Eu demorei um tempo pra entender o que ela estava falando, no meio da dor. A Iara também achou que fosse ajudar, disse que estava bem indicado. Pensei que eu topava qualquer coisa que fosse ajudar o bebê a nascer. Então a Paloma rompeu a bolsa e sugeriu eu ir pro quarto, ficar meio deitada por algumas contrações. Subi na cama e fiquei um pouco lá, depois passei pra banqueta, no quarto mesmo. Num espaço pequeno entre a cama e o armário, com o Marcel atrás de mim me segurando e a Carminha na minha frente, pra eu puxar os braços dela. A Paloma pediu pra Iara pegar o oxigênio e eu gelei, achei que tivesse alguma coisa errada com o bebê. Mas era só pra me dar um fôlego, porque eu estava muito cansada. E era hora de fazer força. A bem da sinceridade (um dos meus objetivos nesse relato), eu não soube que força fazer. Fiquei meio frustrada, confesso, porque achava que eu saberia na hora. Mas eu não sabia, e as três mulheres que me acompanhavam foram me ajudando. Segura o ar, espera, solta, força. A Paloma pegou minha mão e colocou pra eu sentir a cabeça. Aaaah! Tava ali, tava nascendo! Ela colocou um espelho e eu vi o cabelinho... isso me deu um gás imenso, e fui fazendo força. Uma força imensa, sei lá da onde eu tirei essa força. Eu concentrei bem e só queria fazer o bebê nascer, e pensava que tava muito perto. De repente, a queimação. Intensa, grande, gigantesca. Círculo de fogo é mesmo uma boa descrição. A cabeça tinha saído, e num pluft depois escorregou o corpinho.
Nasceu! Meu bebê nasceu! A Iara falou "vinte e uma e quarenta nove", a hora que eu nunca vou esquecer na vida. A Paloma tirou a volta do cordão (que eu nem vi na verdade, fiquei sabendo depois) e me entregou aquele pacotinho. Eu não acreditava. Não acreditava que tinha nascido, que eu tinha parido, que a dor tinha acabado, que eu era mãe, que tinha uma pessoa nova no mundo. Dei as boas vindas, e olhava pro pacotinho e pro Marcel, e beijava o pacotinho. Aí lembramos de olhar pra saber se era menino ou menina: menina! É uma menininha linda, olha, meu amor. Uma emoção sem tamanho tomou conta de mim, da casa, do mundo. Levantei e fui pra cama, deitei um pouco. Fiquei ali namorando a menininha linda que, ao contrário do que eu queria, não tinha a menor cara de Clara. Ela já mamou, sugando muito forte, e a Iara disse que pelo jeito ela nasceu porque estava com fome. Elas saíram do quarto e ficaram na sala. Ficamos eu, Marcel e nossa filha ali. Quis ligar pra minha mãe pra contar, e foi uma bagunça só enquanto ela contava pro meu pai e pros pais do Marcel, que estavam lá. Liguei pra minha irmã e pro meu irmão. Os irmãos do Marcel já tinham ficado sabendo. Quanto amor dava pra sentir em tão pouco tempo! Ela tava ali, no meu colo. Minha filha.
A Paloma, a Iara e a Carminha voltaram depois. A placenta saiu lindona, segundo a Iara. Me limparam um pouco, a Carminha me deu sopa na boca. Paloma pesou e mediu a pequena, que nasceu com 49cm e 3,600kg e só ganhou nome no dia seguinte (eu achava que íamos demorar semanas, então menos de 24h foi bom demais). Ela ficou ali, no meu colo. Nosso pacotinho mais lindo... O Marcel cortou o cordão umbilical dela, e a Paloma já tirou o sangue para fazermos o exame de rh no dia seguinte. A Carminha foi embora primeiro, cansada do dia intenso, e a Iara e a Paloma ainda ficaram um pouco, porque tive que levar uns pontos. Depois dormimos, pela primeira vez, nós três na nossa casa. O mundo tinha mudado pra sempre.
Hoje consigo reconhecer a beleza e a força do parto que tive, com suas travessias, dúvidas e sombras. Com as longas horas e tudo mais que aconteceu. Mas logo depois eu achei que tivesse sido um parto "menor", como se existisse isso. Como se cada vez que vacilei, que achei que não fosse aguentar, diminuíssem a minha experiência. Percebo agora a bobagem que isso é, a armadilha em que me meti. Todo parto é gigante e imenso, todo parto é único, todo parto é como deve ser. Todo parto é uma passagem pra algo muito maior, todo parto ensina o que a gente precisa. Todo parto é perfeito do seu jeito. Foi isso que aprendi, e vou aprendendo a cada vez que conto do parto, cada vez que lembro de detalhes.
Muita coisa ficou de fora do relato, claro. A Paloma toda hora escutando o coração do bebê, o quase vômito que rolou, os outros cocôs fora de lugar que rolaram também. A Paloma falando que minha frase “eu não nasci pra isso” tinha sido inédita (vou entrar pro caderninho!). Tantas belezas, nuances e escatologias que fazem parte do parto, parte da vida.
E agora, sentindo como quem ganha um Oscar (só que bem mais legal), os agradecimentos.
Falo, de jeito bem piegas, que as três mulheres que estavam comigo foram como fadas, cada uma com um presente. A Paloma trouxe força. Uma força carinhosa, mas determinada e firme, que me ajudou a seguir em frente e acreditar. A Carminha, com seu jeito lindo, trouxe tranquilidade. Uma calma tão grande que tomou até sorvete no meio do turbilhão, e eu adoro lembrar disso. A Iara, que eu só tinha visto uma vez na vida, trouxe a amorosidade. A torcida que ela fez pra mim foi indescritível e fez muita diferença. Impossível agradecer suficientemente tudo o que elas fizeram, tudo que foram. É um laço que, eu acredito e espero, não se desfaz. Elas ajudaram a trazer minha filha ao mundo com respeito, carinho e confiança, e pra isso não existem palavras.
Agradeço, muito, ao Marcel, meu marido e companheiro, que vivenciou o parto comigo de forma tão intensa e entregue. Foi ali meu porto seguro, acreditando em todos os momentos na minha força quando eu mesma duvidava. Compartilha a vida, os sonhos e as aventuras comigo, e disso também as palavras não dão conta.
Agradeço à Clarice, por ser do jeitinho dela e por ser minha filha.
E agradeço à vida, “que me ha dado tanto”.
Comentários
Não um medo por achar que, se eu lesse, eu ia acreditar que eu não suportarei a dor quando for minha vez. Não, não.
Um medo por "ler" você sofrendo... sabe? Nem sei se faz sentido... mas isso que me fez não querer ler antes.
E hoje eu estava passeando pelo meu blog, pelo blog do Dú e cheguei aqui, dei de cara com o "Parto da Clarice". Rolei a barra pelo post todo e vi as fotos e lembrei da Clarice linda e lembrei do rosto de vocês dois olhando pra ela e lembrei de você me contanto outros detalhes bonitos do parto. Rolei a barra de volta pra cima, li cada palavra e não-palavra e não vi sofrimento, vi amadurecimento, vi tantas tantas coisas que nem vale a pena nomeá-las :)
Grata pelo compartilhar, Nath querida <3