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Parto da Elisa

41 semanas completas. Tinham sido 3 dias de contrações que iam e vinham, acupuntura, chás, caminhadas, tampão mucoso saindo... e nada de bebê. Encasquetei que eu precisava comprar uma cesta pequena de vime pra guardar qualquer coisa, virou imprescindível. Fomos então atrás, e tudo que eu pegava na loja gerava um questionamento do marcel. Enquanto isso, na escola, toda uma vida acontecendo, e ao invés de ter ido eu tava ali sendo temperada na ansiedade sem fim. Desisti de todas as compras e chorando falei que só queria ir pra casa. Minha vontade era de entrar numa toca, ficar quieta. Mas tinha que fazer ecografia e cardiotoco, então fomos pra maternidade. “acho que a bebê tava dormindo, vamos precisar repetir o exame porque ela não mexeu”. Tomei glicose na veia, já em frangalhos, e fiz o exame chorando. Será que estava tudo bem? Dessa vez ela mexeu, a ecografia tava ótima e mesmo assim o médico plantonista falou que 41 semanas era pra já nascer, que mesmo o bebê bem começava a ficar arriscado, fez um terrorismo básico. Sorte que me formei em anos de blogs e relatos de parto e muita informação e uma médica que eu confiava muito, e sabia que aquele terrorismo era infundado. Mandei os resultados pra médica, fomos jantar, comi um monte de pimenta em mais uma tentativa cabalística de chamar a bebê. Na volta pra casa, depois de um dia emocionalmente exaustivo e já no meu limite, falei pro marcel: se amanhã, até meio dia, nada tiver acontecido, eu não entrar em trabalho de parto, vou internar e induzir o parto. Não aguento outro dia igual hoje. Chega.

Fui deitar umas dez e muito, meia noite Clarice me chama, pedindo pra vir pra nossa cama. Cantei pra ela adormecer, e quando ela dormiu eu senti umas contrações. Como já tinha passado muitos dias assim, tentei dormir, mas já não consegui. A dor tava mais forte mesmo, e em silêncio agradeci o trabalho de parto estar começando de madrugada. Ainda fiquei deitada um tempo, mas percebi que era pra valer. Peguei a bola de pilates, coloquei no quarto e fiquei lá rebolando para aliviar um pouco. Depois de tantos dias que tive contração e elas foram embora, resolvi esperar antes de me animar e de chamar o marcel. Se fosse outro alarme falso era só dormir de novo. Mas elas não tavam indo embora, ainda bem, e tavam bem mais doloridas. Chamei ele e falei “começou! Tá de 10 em 10 minutos” Dei risada de mim mesma porque dias antes estava falando que tava com medo de não saber reconhecer quando começasse de verdade. Ha ha, pelo menos comigo não tem como não saber. Coloquei música de uma playlist que fiz pro parto e logo me irritei com algumas músicas. Refiz a lista bem mais enxuta, acho que tinham duas músicas só que eu queria ouvir. Fui entrar no chuveiro, mas a luz do banheiro era muito forte e não queria ficar no escuro. Peguei então o abajur do quarto e empolerei ele no cantinho da pia estreita. Tempos depois, quando lembrei dessa cena, achei muito engraçado, mas na hora fez todo sentido. Eu me agarrava a cada contração, respirava fundo. Nessa hora, tocava uma música que diz “siente que el momento llega... siente: estamos ayudando, lo divino está contigo”.
Ouvir essa parte do “estamos ayudando” me emocionava muito. Na quinta-feira eu tinha passado a manhã com contrações, e vivi um processo bem lindo: entrei no chuveiro me agarrando a cada contração torta que vinha. Começou a tocar “canto da sereia”, da Marisa Monte, e pedi então pra iemanjá me ajudar. De repente me arrepiei toda e comecei a chorar, enquanto me vinham em pensamento todas as mulheres que cruzam e cruzaram meu caminho. Vieram as mulheres da minha família, amigas de infância; amigas que falo todo dia, amigas de quem me distanciei por tantos motivos, mulheres que me inspiram, que são fortaleza - e eu nem mesmo sabia. Era como se fosse um trabalho coletivo, e eu chorava sem nem entender bem, e continuava arrepiada naquele momento tão forte e lindo. Ali, na madrugada de sexta pra sábado, ouvir essa música me trouxe de novo essa sensação: eu não estou sozinha, tem muitas mulheres comigo. Me agarrava mais uma vez a cada contração, e reparei que elas estavam menos espaçadas. Chamei o Marcel e pedi pra ele marcar, e assim como no parto da Clarice, tinham passado de intervalo de 10 minutos pra um intervalo de 3. Ele ligou pra médica, que achou melhor irmos logo pro hospital. Como era segundo parto, tudo pode acontecer mais rápido. (spoiler: ou não).

Acordamos minha sogra, que estava lá em casa, e liguei pra minha irmã pra avisar também, pra ela ir logo cedo lá pra casa ficar com a Cla, mas ela não atendeu. Não sei se mandei mensagem, acho que não. Pus um vestido e meu colar amuleto, e não tirei a última foto da barriga, pra não acordar a Clarice.
(última foto da barriga foi essa, de sexta à tarde)

Pegamos as malas, prontas há tantas semanas, e atravessamos a cidade no meio da madrugada. Fui atrás com as contrações, e enquanto respirava fundo, começou a tocar na rádio uma música que me levou de volta à adolescência, quando as madrugadas eram de festas e baladas. Sei lá porque pensei nisso, mas fiquei meio rindo dessa vida, das mudanças que vem. Chegamos na maternidade vazia e demos entrada nos documentos enquanto esperávamos minha médica. Dra. Renata logo chegou e fomos ver quanto de dilatação eu tava: 4cm. Achei o máximo! Só tinha umas 3 horas de trabalho de parto e 4cm! Na outra vez fui ter essa dilatação já com quase 10h de tp. Ficamos num quarto na maternidade, eu, Marcel e a Renata. As dores estavam mais intensas, e eu sentava na bola e puxava a maca. A cada contração minha reação era me contrair também, e aí eu pensava que a bebê tinha que vir, e tentava me concentrar e relaxar, ir me abrindo. Fui pro chuveiro e deixei a pobre médica ouvindo um mantra, que estava na minha lista, e que era enorme, meia hora de repetição. Escrevendo assim é até engraçado, mas lembro de estar no chuveiro quente ouvindo de longe o tal mantra (que é lindo) e pensar nisso da Renata lá sem poder trocar a trilha sonora. Ela pediu um lanche pra mim, e quando voltei pro quarto fui comendo entre as contrações. Eu não sabia se estava lá há muito tempo ou pouco. Parecia não passar, minha sensação era que não tinha nada acontecendo, apesar das dores e contrações. Eu acho que comecei a vocalizar nessa hora. Só lembro mesmo de sentar na bola e me segurar na barra da maca, me jogando pra trás, tentando deixar a contração vir e fazer seu curso.

De repente foi hora de irmos pra sala de parto. Eram 5 da manhã quando fomos. A sala é ótima, tem banheira, banqueta, aquele pano pra puxar que é maravilhoso, barras... mas achei estranho não ter janela. E tinha também um relógio imenso na parede, ali marcando tudo. Aqui as memórias vão ficando meio confusas, não lembro muito a ordem das coisas. A dor foi ficando muito intensa, e toda hora me dava vontade de ir ao banheiro. Lá ia eu com o Marcel, ficava algumas contrações no banheiro, e voltava. Eu tava cansada, depois me liguei que tava sem dormir desde a manhã do dia anterior, já que eu tinha deitado e as contrações começaram em seguida. Então a exaustão era grande. Dor, muita dor. Comecei a chorar. Acho que chorei muita coisa, até hoje não sei bem tudo. Chorei a gravidez talvez, chorei minhas dúvidas, chorei o cansaço. Em uma das muitas idas ao banheiro, falei pro Marcel “eu sei que eu dou conta, mas eu não to dando”. Eu sentia que não ia conseguir, por mais que soubesse que eu já tinha parido, que eu dava conta, minha sensação era que dessa vez não ia dar. Entrei na banheira, que aliviou um pouco a dor intensa. Gritava muito e xingava também, uns meio palavrões entrecortados pela dor. Lembro de sempre ficar pensando “vem, bebê. Vem, bebezinha”. E nessa hora na banheira do nada me veio “vem, Elisa”. Levei até um susto, não tinha pensado nesse nome. Mas a dor era maior que a epifania.


A progressão da dilatação tava bem lenta, horas depois e estava em “quase 6cm”. Como assim quase 6? Eu cheguei lá com 4! Já tinha passado muito tempo... veio a sensação que não ia dar conta. A Renata já tinha feito um pouco de spinning babies, uns exercícios que ajudam a encaixar o bebê, e que eu tinha feito na gravidez também, mas nada. Ela perguntou se eu queria romper a bolsa, pra ver se acelerava um pouco a dilatação, e eu topei. Ela rompeu e vi que tava com uma cor estranha: mecônio. Gelei. Ela me tranquilizou, disse que os batimentos estavam ótimos. Passado mais um tempo ela me examinou pra tentar ver a posição da bebê, e viu que ela estava “tortinha”, com a cabeça de lado. Juntei essa informação com o mecônio e meu cansaço e perguntei se ia precisar de uma cesárea. A essa altura eu já estava quase querendo a cesárea, a sensação de que não ia dar era muito grande. A Renata disse que ainda tínhamos algumas opções, e eu acreditei. Mas nisso a dor era absurda. Eu não aguentava mais, eu não sabia pra onde ir com tanta dor. Pedi anestesia, talvez tenha sido antes disso. Como nas consultas antes eu tinha pedido pra Renata não me oferecer anestesia, ela meio que fingiu que não me ouviu. Sei que eu sentava na bola, puxava o rebozo e gritava, gritava. Ouvia vários choros de bebês nascendo nas salas perto e ficava agoniada, que horas ia chegar minha vez? A Renata sugeriu fazermos mais um pouco os exercícios do spinning babies, pra ver se ajudava a encaixar, e eu disse que só com anestesia, que eu não aguentava mais. Nessa hora o Marcel me olhou e acho que entendeu que não tava dando mesmo. Depois ele me contou que no parto da Clarice eu fazia umas caras de desespero, mas que dessa vez era diferente, e ele percebeu que tava pegando mesmo. A médica chamou a anestesista, que chegou brincando que eu ia amar ela mais do que minha médica. Tomei a anestesia, fizemos o spinning babies e... dormi. Quando a dor passou acho que eu relaxei tanto, e tava tão cansada, que apaguei na sala de parto. Não sei quanto tempo, pra mim pareceram horas. Acordei meio sem saber onde eu tava, mas acordei renovada. Só que aí as contrações tinham parado... a Renata falou pra eu andar, pra ver se voltavam. Fui andando, com o acesso (na consulta anterior ao parto eu tinha perguntado se precisava colocar acesso, porque eu não queria, mas lá estava ele), e nada. Vinham umas contrações mixurucas, não duravam nada, diferente das outras que eu sentia que eram super potentes. Como não tava voltando, a Renata falou pra colocar ocitocina, pro trabalho de parto pegar de novo. Eu falei que ok mas perguntei se podia tomar outra anestesia caso doesse muito de novo. Acho que fiquei um pouco com medo da dor, ela tava me paralisando. E aí veio a ocitocina – e é a questão com intervenção, uma coisa vai levando a outra e a outra. As contrações voltaram, com força, e ficar em pé era o que ajudava. Eu não sei mais o que estava pensando, sei que sentia que tava perto mas ainda faltava muito. Quando tomei a ocitocina, a Renata disse que íamos esperar um tempo x, que se não tivesse tido nenhuma progressão iríamos precisar fazer por via superior – cesárea. Eu tava bem entregue nessa hora. Lembrei do mecônio, da posição torta, e pensei que seria como tivesse que ser. Que ia ser da melhor forma.

Depois de um tempo de contrações, mais um exame: 8cm de dilatação, bebê encaixada, tá quase! Nessa hora me deu uma fome descomunal, e a dra Renata conseguiu afanar um iogurte pra mim, e foi me dando de colher entre as contrações, que pareciam nem espaçar mais, enquanto eu estava em pé, dobrada na maca. Ouvi uma mulher gritando na outra sala e falei: “finalmente outra gritando! Só ouvia os bebês chorando, que bom que não to sozinha!” Acho que nessa hora pedi anestesia de novo. Não sei quando foi, na verdade, mas sei que tomei mais um pouco de anestesia quando o bicho pegou. E aí fui pra banqueta. Essa foi outra questão da anestesia: eu não sentia as contrações, não sabia que horas fazer força e nem sabia fazer a força. Na verdade, quando ela falava “tá vindo a contração, faz força”, eu me concentrava e achava que tava lá arrasando, e ela “não, vc não tá fazendo força, aqui, ó, empurra meu dedo”. E só assim eu conseguia ter algum controle pra saber a força que era. Ainda no expulsivo eu comecei a sentir a contração vindo, mas sem dor, e fiquei toda animada porque pelo menos sabia que era a hora de fazer força. Fomos assim, Marcel atrás de mim me segurando e apoiando, Renata me ajudando nesse momento, quando senti direitinho, sem a dor e ardência do círculo de fogo, a cabeça passando. Parecia em câmera lenta, aquela sensação da cabeça chegando, do corpo fazendo o que precisa, e num pluft o corpinho todo. Ela veio direto pro meu colo, não chorou e meu mundo parou um pouco, fiquei aflita. “chora, filha.” O choro veio forte, meu alívio também. Segurei aquele pacotinho, de novo não acreditava, bem-vinda, filha, bem-vinda. Nasceu às 11h52, na beirinha do “prazo” que eu tinha dado, com 50cm e 3,735kg, com 41 semanas e 1 dia, em um sábado de lua crescente, me transformando em mãe de duas e enchendo a vida de amor.


Foram praticamente 12 horas de trabalho de parto, de travessia, com uma médica-parteira muito respeitosa e querida e o Marcel novamente dando todo suporte e força que eu precisei. Tentei me entregar a cada contração, senti medo, orgulho, coragem; mergulhei, fiz cocô, dei risada, chorei, perdi a noção do tempo e espaço, olhei cada ponteiro do relógio, trouxe uma vida ao mundo. Do jeito que precisava ser, como eu acredito que todo parto é.

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